5 de Junho de 2020 - Campinas - SP
No dia 25 de maio, George Floyd, um homem negro de 46 anos, foi assassinado por um policial na cidade de Minneapolis, nos EUA, em um ato que escancara a verdadeira face das sociedades filhas do sistema capitalista parasitário racista. O caso repercutiu pelo mundo todo, gerando revolta, que foi intensificada quando o departamento de polícia de Minneapolis alegou que Floyd teria morrido no hospital por complicações de saúde. Após a falsa afirmativa, protestos violentos contra a supremacia branca e o racismo estrutural se desencadearam na cidade, que teve prédios e carros incendiados, além de multidões ocupando as ruas. A história dos Estados Unidos é construída em cima do sangue de povos originários* e afro-americanos. Mesmo após a escravidão no país ter sido abolida, em 1865, após a Guerra Civil Americana, a "liberdade" do povo negro americano nunca fui alcançada de forma plena, pois aspectos importantes da história estadunidense envolvem a lei como aparato racista, além de seu papel intrínseco de discriminação de classe. Por exemplo, nos anos seguintes à abolição, a maior parte da população afro-americana estava no campo, seja como meeiras, arrendatárias ou assalariadas, em condições análogas à escravidão, trabalhando para pagar dívidas com seus empregadores, os senhores de outrora.⁽¹⁾ Ou, ainda, podemos citar as prisões estadunidenses, já que a lei aboliu a escravidão, mas não completamente, sendo ainda aplicada como punição de crimes. Assim, os presos do sistema carcerário estadunidense trabalham exaustivamente a baixíssimos salários, configurando trabalho análogo à escravidão – não à toa, a maioria da população carcerária dos EUA é negra, o que é denunciado como escravidão moderna.⁽²⁾ Outro episódio lamentável de leis racistas estadunidenses envolvem as leis Jim Crow: um pacote de leis presentes no Sul dos EUA com a intenção de ativamente propor segregação racial. De acordo com as leis Jim Crow, pessoas negras e brancas eram destinadas a ocupar espaços distintos em público, sendo os espaços a pessoas brancas muitas vezes melhor financiados e em condições superiores. Rosa Parks surge como uma das inúmeras pessoas negras que desafiaram esse sistema, sentando-se em um banco de ônibus destinado a pessoas brancas e recusando-se a se levantar, em 1955.⁽³⁾ Ela foi detida após esse ato, corroborando um fato: a polícia, enquanto mantenedora e reforçadora das leis racistas, é também racista, brutal e opressiva, um braço cruel do aparato de repressão estatal. As leis Jim Crow foram abolidas em 1965, após muita luta da população, mas o racismo continua sendo perpetuado pela polícia: desde 2015, 1242 pessoas negras foram mortas pela polícia estadunidense.⁽⁴⁾ Não à toa, foi possível observar durante os protestos da última semana uma cena curiosa: uma cabeça de porco, arrancada do corpo, foi levantada por um manifestante negro, em uma poderosa manifestação contra a violência policial – os policiais são chamados de "pigs", porcos, pela população antirracista. Com este ato um recado claro é dado: parem de nos matar, ou os próximos serão vocês. No Brasil, por sua vez, de acordo com a ONU em uma campanha lançada em 2017⁽⁵⁾, a cada 10 pessoas assassinadas 7 são pretas. No dia 19 de maio, em um caso protagonizado pela violência policial, assim como o de Floyd, João Pedro Matos, de 14 anos, foi morto por policiais em mais uma operação sanguinária em uma favela do Rio de Janeiro. A morte de João Pedro teve bastante repercussão nacional e internacional ⁽⁶⁾⁽⁷⁾, trazendo à tona mais uma vez a questão sobre o genocídio vivido não apenas pelos povos pretos, como também os indígenas, que sofrem com o racismo e marginalização desde a invasão dos europeus no continente. Em um país afetado por um regime de extrema-direita, subserviente ao imperialismo, principalmente norte-americano, e que dialoga com grupos neonazistas, a intolerância e a violência, principalmente com pessoas negras, se tornam ainda mais evidentes. O assassinato de João Pedro foi, infelizmente, apenas uma das milhares de mortes que ocorrem quase que diariamente nas mãos de policiais nesse sistema intrinsecamente racista e desigual no qual estamos inseridos. E os números só pioram: na quarentena, a polícia do RJ matou 43% mais pessoas do que em comparação ao mesmo período do ano passado.⁽⁸⁾ Ou seja, aqui também, se não ainda mais, a polícia tem um grande papel na perpetuação da opressão estatal em cima dos corpos negros. Com o andamento dos protestos nos EUA, surge a indagação por parte de algumas pessoas sobre o porquê de não ocorrer manifestações violentas e de grande escala no Brasil. Seria uma suposta falta de engajamento por parte da população frente às atrocidades do Velho Estado? Na verdade, pode ter a ver com o modo como esses movimentos são tratados no país. A mídia burguesa e o governo reacionário sempre tentam minimizar ou esconder, além de criminalizar, manifestações e protestos populares, em especial os violentos, como tentativa de manter a fachada de Estado social de direito, baseado na ilusão da existência de uma democracia para a massa explorada da população. Cada dia mais a crise política mundial se agudiza e as contradições do sistema capitalista e suas instituições ficam mais escancaradas. Então o povo se ergue para responder à altura e eis aí a importância desse novo levante de manifestações populares, especialmente as radicalizadas. A fúria do povo negro transborda em cada gota de sangue derramado, sendo mais do que justa a revolta. Afinal, o mesmo Estado que deslegitima e persegue essas movimentações é o que financia a política de genocídio extensivo das populações marginalizadas e transforma o campo, as favelas, comunidades e bairros pobres em verdadeiros campos de guerra. Ainda, não podemos nos esquecer das diversas ferramentas legalistas das quais este velho Estado se vale para punir aqueles que lutam e dizimar movimentos sociais, tais como a reacionária Lei Antiterrorismo⁽⁹⁾ (Lei 13.260/2016), que é aplicada a manifestantes e movimentos sociais, e as operações de Garantia da Lei e da Ordem⁽¹⁰⁾ (GLOs), que concede passe livre para a atuação das Forças Armadas no “restabelecimento da ordem”. Estes protestos motivados pela luta antirracista estão eclodindo por todo o mundo: EUA⁽¹¹⁾, Brasil ⁽¹²⁾ , França⁽¹³⁾, Nova Zelândia ⁽¹⁴⁾, Canadá⁽¹⁴⁾, Inglaterra⁽¹⁴⁾, Alemanha⁽¹⁴⁾, Austrália ⁽¹⁶⁾ e tantos outros. Casos como de Floyd e João Pedro não são casos isolados, tampouco tratam-se apenas de uma questão norte e/ou latino-americana ou então de “direitos humanos”. Trata-se de uma questão de solidariedade internacional à luta justa dos povos, destacando-se a do povo preto e indígena, por sua libertação desse sistema criminoso e suas profundas raízes racistas. A luta reivindicativa por direitos é sempre justa e necessária e deve ser exercida, sendo sempre importante relembrar que a reação do oprimido é diferente da violência do opressor. Logo, ir contra um protesto violento motivado pela escancarada opressão e subjugação de um determinado povo, como no caso de Floyd, é ir a favor da conservação de um sistema falho e exclusivista, que irá permanecer assim caso não haja ruptura profunda da estrutura social e econômica em que vivemos.
Gestão Maré 2020
Glossário * Povos originários = povos nativo americanos * Meeiro = agricultor que trabalha em terras que pertencem a outra pessoa e reparte seus rendimentos com o dono dessas terras * Arrendatário = pessoas que arrendam (alugam) o imóvel de um proprietário e pagam em dinheiro.
Nota disponível em: https://docs.google.com/document/d/1McbQxdYlNEZH_1mAiMc_dvQsAp7rBTyFDdtvpkFy9Js/
Referências
Davis, A. Mulheres, raça e classe. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
da Silva, N. M. R. O Trabalho nas Prisões dos EUA: “Não É um Sistema de Justiça, É um Negócio”. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 70. Out/Dez 2018.
Rosa Parks. Encyclopædia Britannica. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3gPTzfp>. Acesso em: 02/06/2020.
A Decade Of Watching Black People Die. NPR. 2020. Disponível em: <https://n.pr/3ctazF4>. Acesso em: 01/06/2020.
Vidas Negras. Nações Unidas. Disponível em: <https://bit.ly/3gHYeAh>. Acesso em 01/06/2020.
Outrage in Brazil as police kills 14-year-old boy leaving over 70 bullet marks. Black Culture News. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/301Rwz9>. Acesso em: 01/06/2020.
During pandemic, Rio de Janeiro residents fear police. Pavement Pieces. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3eLhTxu>. Acesso em: 01/06/2020.
Mortes por policiais crescem 43% no RJ durante quarentena, na contramão de crimes. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://bit.ly/2zNuXnf>. Acesso em: 01/06/2020.
BRASIL. Decreto-lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis n º 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: <https://bit.ly/2MpnOvP>. Acesso em: 02/06/2020.
Garantia da Lei e da Ordem. Ministério da Defesa. Disponível em: <https://bit.ly/3eL5uJU>. Acesso em: 02/06/2020.
USA: Enfurecido, povo incendeia delegacia policial responsável pela morte de George Floyd. A Nova Democracia. Disponível em: <https://bit.ly/3csAU6b>. Acesso em: 02/06/2020.
Juventude combatente enfrenta repressão da PM e ataca bancos em Curitiba. A Nova Democracia. Disponível em: <https://bit.ly/2XVZ3g7>. Acesso em: 02/06/2020.
Protesto antirracista na França tem confronto entre manifestantes e polícia. UOL. Disponível em: <https://bit.ly/3eWnTDJ>. Acesso em: 02/06/2020.
Vídeo: Nigeriano Israel Adesanya se emociona e discursa em ato contra racismo na Nova Zelândia. Globo. Disponível em: <https://glo.bo/3eKRjV3>. Acesso em: 02/06/2020.
Toronto, Londres e Berlim também tem protestos antirracistas após morte de George Floyd nos EUA. Globo. Disponível em: <https://glo.bo/36TbHR4>. Acesso em: 02/06/2020.
'Racism is real in Australia': Aboriginal deaths in custody in spotlight of Perth Black Lives Matter protest. WAtoday. Disponível em: <https://bit.ly/2zYrli1>. Acesso em: 02/06/2020.
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